“Não tive nunca medo da morte”. As frases da entrevista íntima que Saramago deu ao Expresso
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Outubro de 2008. José Saramago revela-se, como nunca o fez, falando de temas íntimos como a recente doença e a luta entre a vida e a morte durante o internamento no hospital, numa entrevista à mulher Pilar Del Río publicada pelo Expresso
A entrevista de exceção foi publicada a 11 de outubro de 2008 na revista Única", do Expresso e foi realizada (claro) em Lanzarote
Leia algumas das frases mais marcantes da entrevista
Quando se ridiculariza a bondade, no fundo, a única conclusão é que se está a justificar a delinquência. Não me refiro a uma delinquência explícita, ativa, mas a uma certa atitude delinquente que se justifica pela indiferença e também pela incapacidade de agir
[Com a hospitalização de fins de 2007 e início de 2008] eu creio […] que me relativizei a
mim mesmo. Aquilo que se estava a passar ali era algo que não podia evitar, cujas consequências finais não podia conhecer, embora fosse de admitir que não resistisse, mas, o que é curioso, é que isso não suscitou em mim nenhuma preocupação. Não me senti preocupado pelo fato de aquela doença poder vir a resultar na minha morte
As únicas pessoas
que podiam fazer alguma coisa por mim eram, evidentemente, o pessoal do hospital, os médicos, tu mesma [a Pilar]. O que acontece é que estava muito seguro, embora nunca o tivesse pensado assim, com esta simplicidade, de que estavam a fazer tudo aquilo que podia para resolver a gravíssima situação em que me encontrava. Mas tu própria recordarás que não
tive nunca manifestações de angústia, de medo, já não digo o chamado medo da morte.
Essa imagem do esplendor de Portugal foi fomentada pelo fascismo e derivou de um falso sentimento patriótico. Tão falso que foi capaz de negar a sempre discutível verdade histórica,
manipulando-a sem pudor. [...] A História de Portugal, tão enaltecida por ter uma identidade que teria resistido a tudo, não tem nada que ver com esse esplendor
Na cabeça de muita gente esteve, e ainda permanece, essa ideia de que ser-se português é
uma coisa diferente. Lembremo-nos da importância que teve a saudade à sombra da qual se definiram filosofias, modos de entender a História do país e a História universal… Tudo isto é bastante falso.
Quando se vive de ilusões é porque algo não funciona. A nossa imagem mais constante é a de alguém que está parado no passeio à espera de que o ajudem a atravessar para o outro lado.
Nós vivemos num tempo que se caracteriza pela irracionalidade dos comportamentos gerais, e pôr aqui um pouco de senso comum, no sentido de que, acima de tudo, o que há que proteger é a vida […] é quase impossível… E mais, se esse ser humano enfrenta outro ser humano porque crê num outro deus, ou porque, ao ter uma outra tradição, vê o outro como um inimigo… A partir do momento em que vemos o próximo como inimigo, a guerra está declarada. A intolerância não é uma tendência, é uma brutal realidade
O ser humano é um animal doente porque não é capaz de reconhecer, ou de inventar, o seu lugar na natureza e na sociedade.
Acho que na sociedade atual falta-nos filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objetivo determinado, como a ciência, que avança parasatisfazer objetivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e pareceme que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.
Somos o que pensamos, e dizemos aquilo que pensamos com palavras. Se as palavras são tão mal usadas, deturpadas, mal pronunciadas muitas vezes, que espécie de pensamento podem
expressar? Isso é frustrante.
Há uma coisa da que presumo: é que no plano… vou usar a palavra, no plano cívico, estive à altura do prêmio [Nobel]. Creio que, depois do prêmio, cumpri as minhas obrigações como cidadão.
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WEBSTORY: TIAGO SERRA CUNHA

TEXTO: EXCERTOS DA ENTREVISTA "O NOBEL NÃO
SIGNIFICOU NADA ÀS PORTAS DA MORTE", POR
PILAR DEL RÍO, PUBLICADA NA REVISTA "ÚNICA" DO EXPRESSO EM OUTUBRO DE 2008

FOTOGRAFIAS: RUI DUARTE SILVA/EXPRESSO
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